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não sabia nada da vida dormindo sozinho e alheio do mundo no meio de um cercadinho terreno enquanto todos os seus irmãos, não caramelo-preto-branco mas pretos e um pouco maiores, se acabavam em lambida e cambalhota na primeira barraquinha da feira de cães em que eu parei. meu corpo todinho, todo meu passado, tudo o que tivera até então, todas as minhas sobras e faltas o escolheram sem outra cogitação, com a naturalidade do instinto ou como o reconhecimento de si no outro. quando acordou, já estava no meu colo e quando deu por si respondia a chamados por 'dori', o pequeno para dorival caymmi borges, nome de batismo de amor escolhido pra substituir 'bruce marrone' no pedigree. estabeleceu desde então pouca coisa de que não abria mão e foi compreendido. estava fadado como nós a ter uma vida imperfeita, cheia de faltas. no entanto, sempre precisou de pouco pra ser tibetanamente feliz: uma almofada, tapete ou pano por cama, basicamente e um pratinho de qualquer ração e água. nunca teve gosto por brinquedo ou passa-tempo, mas sempre amou carinho com o mais profundo prazer e a ele se entregava não só com o corpo mas com a inteireza de sua alminha limpa sem um traço de má-índole ou maldade.

passeamos muito. ficamos muito a sós. brincamos, amamos e aprendi a ser um pouco menos idiota. me ensinou a ser pai, me ensinou sobre mim, sobre um amor mais calmo e silencioso. preparou o caminho pro nino, meu filho humano, o meu filhinho canino, meu fifo, fifão, doroco, dorico, dorô, príncipo, boxeur, bailarininho. envelheceu como os nossos corpos falhos, o coraçãozinho soprando, o pitoquinho da audição bem baixo, hipertenso - mas a alma, o amor e seus olhos grandes intactos. nunca choraram o que o mundo porventura não lhe pôde dar. e o que certamente não pudemos oferecer por mais pura falta humana da fineza animal. reencarnação de um lama muito doce que nessa vida não pecou e pode voltar a ascender.

meu parceirinho do mundo partiu hoje sem que eu pudesse sentir o quente do seu ar e seu corpinho. quando retorno não mais seus barulhinhos e tanta coisa que vou dar por sentida falta, cujo buraco nada mais enche, sendo as ausências mesmo não conscientes mais que as pequenas memórias o que levarei tatuado pro fim. meu amiguinho se vai deixando um irmão humano mais novo alheio no meio do cercadinho de um mundo feio prestes a ficar mais feio; uma mãe amorosa e muito triste e um pai mais só. que seu eterno descanso seja o alimento de uma árvore próxima. que sua memória em mim seja sempre um alento, uma calma e um momento de simples amor. que nossa família seja melhor pelo máximo respeito a sua existência. obrigado por tudo e siga em paz, amigão

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