Pausa para descanso do maxilar: era muito conversador!

Pausa para descanso do maxilar: era muito conversador!

Em um momento do show de lançamento do Batente, eu li um poema escandalosamente bonito do José Chagas. Sabia do risco de fazê-lo já que é um poema bem longo. Mas tinha certeza de que valia cada palavra. José Chagas é um poeta cuja força se prova quanto mais longas o poema é. Com ou sem rima! Quando nos conhecemos, ele me disse: "a rima só atrapalha os poetas trapalhões". Mesmo quando ele tem de encadear os pensamentos com rimas, ele não deixa de ser fluente e não sentido não é diminuído pela palavra da rima. É realmente impressionante! Pra mim, o maior.

Ele morreu no ano passado, aos 89 anos como pai e na idade em que previra. E como muita gente veio me perguntar sobre o poema e ele não está na internet, eu o reproduzo aqui. Grande Zé Chagas! E que arrependimento de não ter uma foto nossa de quando nos conhecemos!

 

DÍVIDA DE VIDA

Devo o mundo a meu pai
que me deu sem que eu pedisse
um horizonte cheio de manhãs,
um sol que se repetia sempre...
E me ensinava o caminho da roça
com o clarão que a vida exige
para alimento da carne e do sonho.

Devo a ele o azul que fiquei amando,
quando abri os olhos para muito além
do que ele nem imaginava.

 Devo-lhe a oportunidade de ser e de estar.
 Embora eu não tenha sido consultado para isso,
 nem indagado que nome queria ter,
nem se achava que aquele era
o melhor tempo de se vir ao mundo.

Devo a ele o bem de ser nordestino,
apoiado desde o início

na esperança inteira de que lá é sempre verde
ainda que tudo em torno sejam cinzas.

Devo-lhe a razão aberta
de ocupar um ponto no espaço
e crescer entre outros que
também não pediram o que eram
e agora não havia outro jeito,
senão o de acomodar no tempo
o destino de cada um.

Devo a ele a certeza
de que sem mim a rosa
que apanhei um dia no chão
ficaria para sempre no chão.
Porque os que iam comigo
não deram a importância que dei a ela.

Devo-lhe a dor e a alegria
de uma vida toda,
que se não teve sentido
foi por minha culpa

assim como lhe devo por antecipação
a morte, que é a certeza primeira de quem nasce
e de que ele não tem culpa nenhuma.

Devo-lhe tudo o que me deu
sem que soubesse que estava dando
Porque para isso me quis ele,
solto no espaço e no tempo.
Não feito à sua imagem e semelhança,

mas à semelhança e imagem
do que ele gostaria de ter sido.

Devo a ele
o gosto de chão que trago na boca. Paladar de frutos colhidos

com nossas próprias mãos
no verde criado por força
do nosso labor.

Devo ao meu pai
a alegria de saber
que ele levou escondido de mim
o meu primeiro soneto
para mostrar ao padre da freguesia,
que era escritor e poeta.

A opinião do vigário não me impressionou
(aliás, bem pouco favorável)
Mas o gesto de meu pai
me deu a certeza
de que um poeta na família
não faria mal
e eu seria bem recebido,
ainda que fosse um poeta pequeno,
porque também nossa família

não tinha desses luxos.

Devo a meu pai
a compreensão da humildade lírica,
de ser a aceitação das pequenas coisas
e a capacidade de medir
o compromisso lúdico pelo tamanho médio
das obrigações reais.

Com ele aprendi que poesia e trabalho
são uma coisa só
um esforço retomado em dobro
para soerguer o mundo
à altura de nossa humana paixão 

Ele me ensinou a poesia do trabalho
e deu-me o trabalho da poesia
para a vida inteira. 

Meu pai era um homem ao sol
um homem cuja sombra
fecundava a terra
e o suor do seu rosto
caía honesto como um sal de batismo
sobre as coisas a que ele
dava nome em seu mundo. 

Devo-lhe o jeito de andar no chão
de pisar os caminhos
com aquela certeza de que,
se afinal não se chega,
não foi em vão ter ousado ir
até onde nos pôde permitir o cansaço. 

Meu pai rezava as novenas de maio
e a vizinhança toda o via assim -
trabalhando a terra e o céu com a mesma fé,
associada aos seus ideais de devoto da vida

que sonha um alegre companheirismo
envolvendo anjos e homens.

Devo-lhe essa ingênua crença
e a boa-fé com que olho hoje
o mundo no pobre e o pobre no mundo,

armado só de seu esqueleto frágil
como se aí encontrasse
a armadura de sua inteira segurança.

Eu gostaria de dizer
que meu pai era igual
a todos os outros pais.
Mas ele era diferente,
senão como pai, talvez como homem,
que mil vezes se deixou enganar
e que nunca enganou ninguém.

Devo-lhe a ânsia de acreditar nos outros
por achar que acreditar é preciso,
ainda que isso nos custe a vida... 

Meu pai me ensinou que há coisas
que a gente só tem quando acha

Mas há outras que a gente só acha
quando tem. 

E é preciso ter fé para poder achá-la
e achar aí a razão única de suportar o mundo. 

Lembro-me dele quando me olho no espelho
mas não sei se o reflexo ainda que luminoso
lhe faz honra à memória
e não sei se ao me ver
estou tendo vergonha de mim
ou dele.

Talvez eu não tenha sabido
tomar meu pai como espelho
e agora a imagem retorcida
que se ergue de mim
recria os seus assombros
move o seu fantasma familiar
repelindo contrária na vida
a ideia que me venha hoje
de um pai espelhado no filho. 

O espelho maior é a vida,
que reflete tudo, 
mesmo no escuro da morte
e a imagem de meu pai
se cumpriu nela
ao sol de um verão antigo, tão longo e de tanta luz
que o fez morrer cego, aos 89 espaços de tempo
com que mediu o seu mundo 

com que pesou a existência
e a tarefa que lhe foi dada
glorificando-lhe as mãos de calos
e sagrando-o homem forte
com o suor dos dias.

Meu pai tinha esperança de sobra
Tinha fé para além do que a fé
fosse necessária
Tinha tanto amor ao chão
que a sua enxada o tocava de manso,
raspando só o que fosse daninho
na terra molhada, pródiga de verde

e se dando ao sol
como noiva afeita ao trabalho silencioso do ventre.

E se o chão secava,
meu pai não o maldizia,
por saber o que se passava
no coração da terra,
impedido ali de refazer o homem

do barro da criação. 

Meu pai sabia as secas
como um homem que lesse
nos horizontes o comunicado
oculto do tempo,
feito por fios de silêncio em fogo
entre o céu e a terra. 

Devo a ele a maneira de olhar o céu
com a humildade azul
que devemos ao infinito. 

Mas devo também a ele
o orgulho iluminado do nordestino
que tendo de retirar-se
ou deixar-se a si mesmo
caminha sempre na direção da volta.

Meu pai
era um homem
ao sol.

 

Retirado do livro José Chagas - Antologia Poética, editora TopBooks

A sobrinha do Zé Chagas tem livros à venda do poeta e pode ser contactada no Facebook.

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